Mercearia da Avó São Revisited

07:00

Segue-se um desabafo lamechão e sentimentalista, portanto: if not in the mood, é clicar em retroceder e seguir para o próximo post.

São parcos os dias em que acordo sem que me lembre de alguma coisa com que sonhei nessa noite. Geralmente lembro-me de alguns episódios, de situações que o meu inconsciente lá decidiu criar para me entreter durante as minhas 7 ou 8 horas de sono. Noutras vezes, lembro-me apenas de ter sonhado que comia leite creme, ou de estar a ver o camião do lixo da janela do meu quarto, ou que discutia com a minha professora de EVT do 5º ano... Coisas sem explicação e que também não interessariam explicar.

Acontece que tenho o hábito de acordar e, automaticamente, tentar lembrar-me logo daquilo com que sonhei. Hoje não foi preciso um grande esforço.

Sonhei com a mercearia da minha avó. Aquela que ficava no primeiro andar de sua casa, onde a minha mãe e os três irmãos cresceram. Quando acordei, sentia-lhe ainda o cheiro característico, a temperatura, a sensação de tocar na balança de dois pratos que ela tinha no centro do balcão comprido de madeira que atravessava à loja. Vi nitidamente as vigas de madeira velha que sustentavam o teto da loja e as teias de aranha que se formavam em algumas delas. Vi perfeitamente cada prateleira onde ela arrumava o arroz Pato Real Malandrinho, a massa Milaneza, as sebentas, o óleo Fula, o azeite Galo, as garrafas de Frisumo e de Seven Up, as embalagens de Suchard, o Tide, as baunilhas, as Gorila e os Chupa-Chups, os pacotes de leite meio gordo, o Cerelac, o Nestum, as garrafas de lixívia. As postas de bacalhau sobrepostas. Os sacos enormes cheios de feijão frade, vermelho e manteiga que ela vendia ao quilo. As grades de cerveja, os Cheetos e as Ruffles - que me fizeram conhecer o verdadeiro sabor da felicidade, a cada coleção de Matutolas ou de Tazos que eu e o meu irmão completávamos.

Vi-me a chegar a casa dela no carro dos meus pais, provavelmente num domingo, com o meu pai ao volante a fazer inversão de marcha junto à capela que ficava a 20 metros de casa dela antes de estacionar. Vi-a sentada na sua habitual cadeira de madeira, cujas quatro pernas prometiam ceder a qualquer momento e que, contrariamente ao que todos adivinhamos que estava prestes a acontecer, se manteve sempre em pé. Era nela que ela passava os dias a tricotar todos aqueles casacos de lã minúsculos cor-de-rosa, amarelos, verde-claros e azuis-bebé, que depois vendia para uma data de sítios. Casacos que a faziam ocupar o tempo e que o meu sobrinho chegou a usar pouco depois de ter nascido, muito embora ela nunca tenha chegado a ver.

Neste sonho não aconteceu nada senão uma espécie de recreação dos meus inícios de domingo à tarde, iguais durante quase 18 anos.

Só faltou poder ver a minha avó São a preparar-me o lanche de sempre: um "molete" com uma fatia da bola de queijo Limiano, que ela cortava com uma grossura igual à de um polegar, e que me entregava depois de nos despedirmos com um beijo e um abraço, para eu vir a comer no carro, durante a curta viagem de regresso a casa.

Não vi essa cena no meu sonho, ou pelo menos não me consigo lembrar disso, com muita pena minha. Mas escolhi achar que tenho um inconsciente matreiro, que decidiu não me fazer ver essa parte intencionalmente, talvez por não querer que eu me despedisse mais uma vez da minha avó.

Já passaram 7 anos desde a morte dela e acho que nunca tinha tido uma visita tão sentida como esta.

A casa que foi da minha avó durante uma vida toda há muito que tem um novo dono. E já não é uma mercearia. Talvez por isso hoje tenha acordado assim tão saudoso. É que muito provavelmente não voltarei a fazer nenhuma visita a este que foi um dos lugares que mais contribuiu para que eu crescesse como uma verdadeira criança dos 90's

Porta tazo, tazos, matutano


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